segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Síntese


O médico Dr. Abílio Garcia de Carvalho nasceu em Mouquim, Vila Nova de Famalicão, em 18 de Julho de 1890, e faleceu em S. Julião do Calendário, Vila Nova de Famalicão, em 26 de Janeiro de 1941; foi presidente da Câmara poveira entre 1937 e princípios de 1940 e executou aí obra notável. Mas fez muito mais do que isso. Em boa verdade, tendo-o a morte colhido apenas com 51 anos, deixou atrás de si um largo número de honrosas realizações:

  • Na juventude enfrentou com ousadia o meio republicano adverso, sendo co-fundador do CADC – Centro Académico da Democracia-Cristã – do Porto e aí sofreu muitos dissabores que o fortaleceram para as lutas futuras.
  • Após a formatura em Medicina, foi servir nas fileiras militares, o que o levou para a Primeira Grande Guerra, para a França como médico.
  • Logo a seguir, foi colocado em Barcelos, a travar a luta contra a pneumónica, firmando naquela cidade excelente nomeada.
  • Entretanto casado, instala-se na Póvoa de Varzim em 1919, onde abre consultório.
  • Em 1923, funda, com o Dr. José Luís Ferreira (barcelense, professor do Liceu poveiro) e os P.es Aurélio de Faria, e Meira Veloso, um núcleo escutista.
  • Em 1925, intervém com extraordinário sucesso no Congresso Eucarístico Arquidiocesano que então se realizou na Póvoa. O êxito obtido leva-o a intervir noutros congressos católicos nos dois anos seguintes.
  • No «Congresso Litúrgico», em 1927, propôs aos Prelados reunidos, a criação, em Portugal, do “Secretariado Nacional do Apostolado dos Doentes”, que, embora não oficialmente, existia já, com sede na Póvoa, mercê da sua actividade e do valioso auxílio dos Rev.os Padres Meira Veloso e Manuel da Costa Gomes, e de outros. Para apoio aos doentes, criou a Visita Mensal, uma página a princípio manuscrita e policopiada, depois impressa, que foi publicada ao longo de cerca de 75 anos.
  • Antigo perseguido da República, entusiasma-se com o novo regime e por isso, no ano de 1933, é já activista político das hostes do Estado Novo.
  • Desde 1934, tornou-se médico escolar do Liceu, tendo sido incumbido de proferir a «Oração de Sapiência» no ano lectivo de 1934-35.
  • Em 1935 realizou várias conferências em Braga, Guimarães, Évora, Niza, etc.
  • Nos primeiros anos em que presidiu à Câmara, criou a «Cozinha Económica», para os pobres, o «Lactário de S. Tarcísio», para as mães com dificuldades no aleitamento dos filhos, e o «Patronato-Oficina de S. José», para os miúdos da rua.
  • Em 1938, inaugurou o abastecimento de água com abundância à Póvoa, vinda agora do rio Ave, uma obra que muito deve à sua determinação.
  • O seu invulgar empenhamento no campo social, dentro duma orientação de fidelidade ao magistério da Igreja, levou a que Pio XII lhe concedesse, em 1939, a Comenda de Cavaleiro da Ordem de S. Gregório Magno. Para a entrega deste galardão, realizou-se em 13 de Janeiro de 1940 uma festa brilhante. Na altura, o Governo nomeou-o governador civil de Angra Heroísmo.
  • Parte em breve para Angra do Heroísmo. Em 17 de Março dá uma longa entrevista à Rádio Nacional, retransmitida depois pela Emissora Nacional, onde expõe os seus planos de acção à frente do distrito que governa. Em 12 de Outubro, regressa definitivamente ao continente. Ainda é operado a um cancro no estômago, mas falece em 26 de Janeiro de 1941. O seu enterro confirmou o grande prestígio que a festa do ano anterior já demonstrara.
.Depois desta síntese, vejamos em pormenor ao menos alguns dos aspectos enunciados.


Na imagem: Dr. Abílio Garcia de Carvalho

Membro-fundador do CADC

Na festa em que Abílio Garcia de Carvalho recebeu as insígnias da Comenda de Cavaleiro da Ordem de S. Gregório Magno usou da palavra, entre outros oradores, o seu colega do CADC Dr. Abel Pacheco. Se não temos o elogio que então fez do homenageado, temos ao menos um longo artigo que depois publicou num jornal poveiro e onde evoca as comuns lutas juvenis. Veja-se um pouco daquela cuidada prosa:

Não admira pois que, no advento da República, a guerra à Igreja fosse preocupação dominante. Era o ódio torvo que mandava e a separação violenta da Igreja do Estado, com desprezo absoluto dos compromissos firmados pela Concordata, a confiscação dos bens da Igreja, a expulsão das ordens religiosas, a laicização do ensino, a instituição das Cultuais e a lei do divórcio, além de outras medidas violentas contra os católicos, mostravam bem, pela pressa com que foram tomadas, que o espírito de seita, aberta e claramente anti-religioso, se preocupava menos com o bem-estar material do povo do que com a ruína da Igreja, que se chegou a profetizar no período de três gerações.
Neste ambiente de hostilidade aos princípios basilares da religião do povo português, nasceu no Porto, sob o manto protector da Igreja Católica, o Centro Académico de Democracia Cristã, cuja divisa era Deus, Família e Pátria. No seu grémio cabiam todos os estudantes católicos, qualquer que fosse o seu ideal político, desde que este não pretendesse absorver o ideal superior do fim espiritual do homem. A César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus – tal era o nosso lema.
Os fundadores eram poucos a princípio, mas o número de sócios subiu depressa, apesar de constituir um acto heróico a afirmação pública da fé católica.
Entre os seus sócios fundadores estava Abílio Garcia de Carvalho, que primava pela sua assiduidade verdadeiramente exemplar e pelo estudo consciencioso dos problemas católicos.
Era nosso Director Espiritual o cónego Dr. José Correia da Silva, hoje Ilustre Bispo de Leiria. Exercíamos a nossa actividade em estudos sociais católicos tendo como guia a encíclica de Leão XIII – Rerum Novarum. Reuníamo-nos todas as quartas-feiras à noite na sede da Associação Católica, instalada na rua de Passos Manuel, e discutíamos amplamente as teses previamente anunciadas.

O articulista da «Ideia Nova» concluiu assim a notícia da passagem do Dr. Abílio de Carvalho pelo CADC:

O incêndio da própria sede do C.A.D.C., as perseguições contínuas, mesmo dentro da Escola Médica, onde a polícia, quase diariamente, procurava este reduzido núcleo de rapazes para os prender, tudo enfim levou o Dr. Abílio da Carvalho a voltar, em 1914, a Lisboa, em cuja Faculdade de Medicina se formou em 1916, seguindo no ano imediato para França como oficial médico.

Na Póvoa de Varzim


O Dr. Abílio Garcia de Carvalho veio para a Póvoa de Varzim em 1919. Uma doente que então recebeu no seu consultório foi a Beata Alexandrina. Mas do que por ela fez, falarei adiante.
Sobre a sua dedicação à causa escutista, escreveu em 1940 a «Ideia Nova»:

Com estes valiosos colaboradores (o Dr. José Luís Ferreira e os P.es Aurélio de Faria, e Meira Veloso) e com o auxílio e trabalho de todos, conseguiu que o «escutismo» poveiro se impusesse, atingindo 100 o número de escutas repartido por três sedes.
Aqui realizou uma brilhante festa escutista, no Estádio de Gomes de Amorim, que ficou memorável e na qual participaram inúmeros filiados de vários pontos do país, honrando-a também com a sua presença o saudoso Arcebispo Primaz, Senhor D. Manuel Vieira de Matos.
Em virtude do muito que trabalhou em prole do escutismo, foi o Dr. Abílio de Carvalho agraciado, pelo Comissário Nacional, com a «Cruz de agradecimento e bons serviços», de ouro, e nomeado Comissário Geral Marítimo.

O Congresso Eucarístico Arquidiocesano da Póvoa de Varzim decorreu entre os dias 2 e 5 de Julho, de quinta a domingo, de 1925. O Dr. Abílio de Carvalho interveio na sexta-feira, no que então já havia da Basílica do Sagrado Coração de Jesus. Penso que se pode dizer que a sua intervenção lhe marcou o futuro. Lançando o seu nome para as páginas da imprensa, abriu-lhe as portas para a participação noutras iniciativas semelhantes e granjeou-lhe acaso fama de orador. Não foi só a comum imprensa poveira ou mesmo nacional (e também espanhola e francesa, como está registado) que fez eco da sua conferência; também a Brotéria a registou com muito aplauso. O tema que desenvolveu foi «A Eucaristia e a Medicina».
Na Brotéria de Setembro, o jesuíta E. Jalhay apresentou uma reportagem do acontecimento com ampla cobertura fotográfica. Sobre o Dr. Abílio de Carvalho escreveu:

No segundo dia, tínhamos a boa sorte de assistir a um conjunto de trabalhos que deveras consolaram todos os congressistas e hão-de colher, estamos certos disso, frutos proveitosíssimos. Foi o primeiro o do distinto médico, Sr. Dr. Abílio de Carvalho, sobre «A Eucaristia e a Medicina», já publicado na imprensa católica a pedido do Presidente do Congresso, que afirmou considerá-lo como um verdadeiro e valioso sermão sobre a Eucaristia. O autor da tese é um jovem ainda, mas com prática de já uns 10 anos de clínica. A sua presença em tal assembleia e o assunto que escolheu para a sua tese tinham despertado o interesse geral dos congressistas. Ali desejaríamos ter visto reunida naquele momento a juventude das nossas Universidades e Colégios, para assistir ao desassombro com que foram feitas afirmações importantíssimas por um autêntico representante das gerações modernas, educadas com Deus e para Deus!

Na publicação escrita desta conferência, encontram-se achegas breves de alguns médicos amigos do autor, como o Dr. Abel Pacheco e o Dr. Henrique Gomes de Araújo. Curiosamente, estes homens muitos anos à frente hão-de dar também o seu contributo no sentido de identificar a doença da Beata de Balasar. Também nela se incluem algumas palavras duma carta do matemático Prof. Doutor Gomes Teixeira.
Voltemos agora ao artigo biográfico da «Ideia Nova»:

Como médico escolar do Liceu de Eça de Queirós, tem desenvolvido uma intensa actividade neste vastíssimo sector da medicina pedagógica, dedicando aos seus alunos uma profícua assistência e procurando sobretudo descobrir neles as más inclinações, antes que ecludam, para lhes corrigir os defeitos natos por uma sábia actuação de ordem moral e psíquica.
É pois um médico escolar competentíssimo, como a moderna pedagogia o exige.
O seu estudo, apresentado ao concurso para médicos escolares dos Liceus, em 1934 – «Desvios Morais dos Alunos sob o ponto de vista genital» – que a revista «Acção Médica» publicou na íntegra, em separata, devia ser lido e meditado por todos os educadores.
Tendo sido incumbido de proferir a «Oração de Sapiência», no ano lectivo de 1934-35, no Liceu de Eça de Queirós, de novo este seu trabalho se apresentou imbuído dos melhores princípios científicos, morais e católicos.

Este interesse pela gente não era novo no Dr. Abílio de Carvalho, ou não tivesse ele sido um dos criadores do escutismo poveiro e do Patronato de S. José.
Desde pelo menos 1933, encontramos o Dr. Abílio de Carvalho activamente empenhado na política. Veja-se alguns parágrafos dum seu discurso pronunciado em 1934 como presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, no Teatro Garrett e Radiodifundido pela Emissora Nacional. Pretende o orador expor algumas linhas de pensamento que fundamentem o corporativismo de Salazar:

As doutrinas demo-liberalistas, tornando o homem senhor absoluto dos seus actos, afastando-o da Corporação, isolando-o das suas ligações naturais, consideravam o homem, um mero número ao lado de outros números, sem impor entre eles um traço de união a fim de congregar os interesses comuns, as aspirações legítimas e as ideias altruístas, cujo expoente mais perfeito é a caridade cristã que o catecismo nos ensina.
Por esta forma, a Pátria portuguesa foi informada durante o último século por essa doutrina materialista dissolvente e pagã, que por estranha condição deificava o homem.
Doutrina que se agarrou ao Estado, corroendo-o de tal forma que hoje há necessidade instante de arrotear de novo a terra portuguesa, para que o sol da Verdade, o sol da Esperança e da Caridade fecunda a inunde de luz, destruindo o joio daninho; e para que, reflectindo-se, vá depois iluminar os espíritos obcecados e inquietos e determine firmemente a confiança na acção e no êxito da empresa.

Não escandalize esta sua adesão ao pensamento de Salazar. Além de que ela era generalizada no tempo, não se podem esquecer os vexames de que ele e a Igreja tinham sido vítimas ao tempo da República. Um homem com uma formação filosófica bem mais alargada e muito mais conhecedor da Europa que o Dr. Abílio de Carvalho, o Pe. Pinho, comungava também de semelhante entusiasmo. Efectivamente este jesuíta escreveu na Botéria, nesse ano de 1934, um longo artigo intitulado «No Estado Novo», onde conclui: «As recentes iniciativas do Governo Português procedem dum pensamento altamente social, a que não parece ter sido estranha a inspiração da Encíclica Quadragesimo Anno (Brotéria, 1934, I. p. 291).
De novo segundo a «Ideia Nova», o Dr. Abílio de Carvalho proferiu em 1935 várias conferências «em Braga, Guimarães, Évora, Niza, etc., focando sempre, de maneira brilhante e convincente, «O Aspecto Social e Cristão da hora presente».

Presidente da Câmara


O Dr. Abílio de Carvalho esteve à frente da Câmara poveira entre 19 de Fevereiro de 1937 e 13 de Janeiro de 1940. Porque quis que a sua administração fosse transparente, publicou em livro dois relatórios da sua actividade. O primeiro intitulou-o Seis meses de Administração Municipal, o segundo Dois Anos de Administração Municipal.
Sobre a sua actuação como presidente da edilidade poveira, ouçamos este testemunho escrito em 1941:

A sua acção como administrador dos negócios municipais foi fecunda e progressiva. Desenvolveu o turismo, a grande fonte de vida e receita da Póvoa, promovendo visitas dos municípios vizinhos, que se realizaram com enorme afluência e entusiasmo, como referimos. Administrou com inteligência e com largueza de vistas a fazenda municipal, promovendo muitos e notáveis melhoramentos na sede do concelho e das freguesias. Em todos os sectores da actividade municipal foi notável o seu trabalho, mas a obra que mais o impõe à gratidão dos poveiros é, sem dúvida, o abastecimento de água à vila. Foi este o seu maior serviço àquela linda terra, que tantos outros lhe deve.

Até aí vinha de Terroso. A concretização deste velho anseio poveiro teve lugar em finais de Abril de 1938. Veja-se como ele se lhe tinha referido cerca dum ano antes:

Aspiração muito antiga e muito legítima da Póvoa, a resolução de tal problema impunha-se como instante e necessária dentre todos os problemas poveiros; sem água não poderia pensar-se em saneamento; e não poderia também justamente chamar-se à Póvoa uma terra de turismo. Deste modo a Comissão Administrativa da Câmara, onde há dois médicos, procurou logo, após a sua posse, estudar o processo já elaborado pela vereação transacta, a qual havia também aberto concursos para as diferentes empreitadas e inscrito no orçamento do corrente ano verba para o pagamento das primeiras prestações.

O trabalho da edilidade precedente não pode desvalorizar a determinação e ousadia que foram necessárias para levar o projecto à prática.
A dinâmica inovadora e criativa que o Dr. Abílio de Carvalho impôs à gestão municipal não conseguiu silenciar os detractores. Ouçam-se as palavras que, em 1939, lhe dirige a este propósito o amigo Pedro Correia Marques, no prefácio do livro Festas de homenagem a Braga, Barcelos, Guimarães e Famalicão:

Quanto às vilanias que topares pelo teu caminho, lembra-te daque­las palavras que o grande Camilo escreveu a respeito do Conde de Azevedo:
“Era um homem de bem. Para lhe chamarem nas ga­zetas facínora, caipira, besta e ladrão, foi necessário que gover­nasse o distrito de Braga em 1845. Desde que esquivou na poltrona da sua biblioteca o osso sacro aos pontapés da política, volveu a ser, por comum assentimento de todos os partidos, um espírito recto, muito esclarecido e digno de exercer os cargos superiores do Estado.”
Tudo te hão-de chamar, Abílio, tudo farão para te desgostarem do trabalho, para te aborrecerem da obra que estás a realizar com tanto desvelo e tanto amor ao Bem Comum, ao Bem da Nação.
Que fazer?
Trabalhar sempre da mesma forma, prosseguir numa acção que tem tanto de meritória, como deste livro, que vai publicar-se, e do «Seis meses de Administração Municipal», que a Câmara da tua presidência publicou, e do «Política do Estado Novo na Póvoa de Varzim», que tu publicaste, se vê.

Deixou a Câmara quando a sua saúde estava muito abalada e quando o Governo já o indigitara para Governador Civil de Angra do Heroísmo.

Cavaleiro-Comendador da Ordem de S. Gregório Magno

O Dr. Abílio Garcia de Carvalho veio para a Póvoa de Varzim em 1919. Uma doente que então recebeu no seu consultório foi a Beata Alexandrina. Mas do que por ela fez, falarei adiante.
Sobre a sua dedicação à causa escutista, escreveu em 1940 a «Ideia Nova»:

Com estes valiosos colaboradores (o Dr. José Luís Ferreira e os P.es Aurélio de Faria, e Meira Veloso) e com o auxílio e trabalho de todos, conseguiu que o «escutismo» poveiro se impusesse, atingindo 100 o número de escutas repartido por três sedes.
Aqui realizou uma brilhante festa escutista, no Estádio de Gomes de Amorim, que ficou memorável e na qual participaram inúmeros filiados de vários pontos do país, honrando-a também com a sua presença o saudoso Arcebispo Primaz, Senhor D. Manuel Vieira de Matos.
Em virtude do muito que trabalhou em prole do escutismo, foi o Dr. Abílio de Carvalho agraciado, pelo Comissário Nacional, com a «Cruz de agradecimento e bons serviços», de ouro, e nomeado Comissário Geral Marítimo.

O Congresso Eucarístico Arquidiocesano da Póvoa de Varzim decorreu entre os dias 2 e 5 de Julho, de quinta a domingo, de 1925. O Dr. Abílio de Carvalho interveio na sexta-feira, no que então já havia da Basílica do Sagrado Coração de Jesus. Penso que se pode dizer que a sua intervenção lhe marcou o futuro. Lançando o seu nome para as páginas da imprensa, abriu-lhe as portas para a participação noutras iniciativas semelhantes e granjeou-lhe acaso fama de orador. Não foi só a comum imprensa poveira ou mesmo nacional (e também espanhola e francesa, como está registado) que fez eco da sua conferência; também a Brotéria a registou com muito aplauso. O tema que desenvolveu foi «A Eucaristia e a Medicina».
Na Brotéria de Setembro, o jesuíta E. Jalhay apresentou uma reportagem do acontecimento com ampla cobertura fotográfica. Sobre o Dr. Abílio de Carvalho escreveu:

No segundo dia, tínhamos a boa sorte de assistir a um conjunto de trabalhos que deveras consolaram todos os congressistas e hão-de colher, estamos certos disso, frutos proveitosíssimos. Foi o primeiro o do distinto médico, Sr. Dr. Abílio de Carvalho, sobre «A Eucaristia e a Medicina», já publicado na imprensa católica a pedido do Presidente do Congresso, que afirmou considerá-lo como um verdadeiro e valioso sermão sobre a Eucaristia. O autor da tese é um jovem ainda, mas com prática de já uns 10 anos de clínica. A sua presença em tal assembleia e o assunto que escolheu para a sua tese tinham despertado o interesse geral dos congressistas. Ali desejaríamos ter visto reunida naquele momento a juventude das nossas Universidades e Colégios, para assistir ao desassombro com que foram feitas afirmações importantíssimas por um autêntico representante das gerações modernas, educadas com Deus e para Deus!

Na publicação escrita desta conferência, encontram-se achegas breves de alguns médicos amigos do autor, como o Dr. Abel Pacheco e o Dr. Henrique Gomes de Araújo. Curiosamente, estes homens muitos anos à frente hão-de dar também o seu contributo no sentido de identificar a doença da Beata de Balasar. Também nela se incluem algumas palavras duma carta do matemático Prof. Doutor Gomes Teixeira.
Voltemos agora ao artigo biográfico da «Ideia Nova»:

Como médico escolar do Liceu de Eça de Queirós, tem desenvolvido uma intensa actividade neste vastíssimo sector da medicina pedagógica, dedicando aos seus alunos uma profícua assistência e procurando sobretudo descobrir neles as más inclinações, antes que ecludam, para lhes corrigir os defeitos natos por uma sábia actuação de ordem moral e psíquica.
É pois um médico escolar competentíssimo, como a moderna pedagogia o exige.
O seu estudo, apresentado ao concurso para médicos escolares dos Liceus, em 1934 – «Desvios Morais dos Alunos sob o ponto de vista genital» – que a revista «Acção Médica» publicou na íntegra, em separata, devia ser lido e meditado por todos os educadores.
Tendo sido incumbido de proferir a «Oração de Sapiência», no ano lectivo de 1934-35, no Liceu de Eça de Queirós, de novo este seu trabalho se apresentou imbuído dos melhores princípios científicos, morais e católicos.

Este interesse pela gente não era novo no Dr. Abílio de Carvalho, ou não tivesse ele sido um dos criadores do escutismo poveiro e do Patronato de S. José.
Desde pelo menos 1933, encontramos o Dr. Abílio de Carvalho activamente empenhado na política. Veja-se alguns parágrafos dum seu discurso pronunciado em 1934 como presidente da Comissão Concelhia da União Nacional, no Teatro Garrett e Radiodifundido pela Emissora Nacional. Pretende o orador expor algumas linhas de pensamento que fundamentem o corporativismo de Salazar:

As doutrinas demo-liberalistas, tornando o homem senhor absoluto dos seus actos, afastando-o da Corporação, isolando-o das suas ligações naturais, consideravam o homem, um mero número ao lado de outros números, sem impor entre eles um traço de união a fim de congregar os interesses comuns, as aspirações legítimas e as ideias altruístas, cujo expoente mais perfeito é a caridade cristã que o catecismo nos ensina.
Por esta forma, a Pátria portuguesa foi informada durante o último século por essa doutrina materialista dissolvente e pagã, que por estranha condição deificava o homem.
Doutrina que se agarrou ao Estado, corroendo-o de tal forma que hoje há necessidade instante de arrotear de novo a terra portuguesa, para que o sol da Verdade, o sol da Esperança e da Caridade fecunda a inunde de luz, destruindo o joio daninho; e para que, reflectindo-se, vá depois iluminar os espíritos obcecados e inquietos e determine firmemente a confiança na acção e no êxito da empresa.

Não escandalize esta sua adesão ao pensamento de Salazar. Além de que ela era generalizada no tempo, não se podem esquecer os vexames de que ele e a Igreja tinham sido vítimas ao tempo da República. Um homem com uma formação filosófica bem mais alargada e muito mais conhecedor da Europa que o Dr. Abílio de Carvalho, o Pe. Pinho, comungava também de semelhante entusiasmo. Efectivamente este jesuíta escreveu na Botéria, nesse ano de 1934, um longo artigo intitulado «No Estado Novo», onde conclui: «As recentes iniciativas do Governo Português procedem dum pensamento altamente social, a que não parece ter sido estranha a inspiração da Encíclica Quadragesimo Anno (Brotéria, 1934, I. p. 291).
De novo segundo a «Ideia Nova», o Dr. Abílio de Carvalho proferiu em 1935 várias conferências «em Braga, Guimarães, Évora, Niza, etc., focando sempre, de maneira brilhante e convincente, «O Aspecto Social e Cristão da hora presente».

Médico da Beata Alexandrina


São vários os médicos que se nos deparam na biografia da Beata Alexandrina. Uns com nomes sonantes, outros mais humildes; uns acompanharam-na por longos períodos, outros abeiraram-se dela mais pontualmente.
Entre os nomes sonantes, contam-se o Dr. Elísio de Moura, o Dr. Henrique Gomes de Araújo e o Dr. Roberto de Carvalho. Entre os que a acompanharam por mais longos períodos, destacam-se o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, o Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Dias de Azevedo. Médicos como o Dr. Pessegueiro e o Dr. Carlos Lima e outros tiveram uma intervenção ocasional.
O Dr. Abílio de Carvalho, encontramo-lo em dois mementos diferentes, mas relacionados: quando ela tem dezasseis a dezoito anos, ainda no contexto das sequelas do Salto, e em 1938, quando, ao reviver a Paixão, readquiria a capacidade motora perdida 12 anos antes.
Veja-se, para começar, esta citação do livro do Pe. Pinho No Calvário de Balasar, pág. 23:

Depois (a Alexandrina) sempre melhorou um pouquinho e foi para a Póvoa a fim de continuar o tratamento. Mas vendo que pouco adiantava, foi ouvir a opinião de outros médicos, entre eles o especialista do Porto Dr. Abel Pacheco, que a submeteu a uma exame rigorosíssimo. Nesta ocasião a Alexandrina chorava muito com dores e com vergonha. O Sr. Dr. Abel Pacheco informou o médico assistente, que nessa ocasião era o Dr. Garcia, de que a doente não tinha cura. É claro que ela não sofreu este desgosto, porque e a família soube encobri-lo.

A ida da Alexandrina ao Porto ao especialista Dr. Abel Pacheco aconteceu em 1922. O mais provável é que ela já frequentasse o Dr. Garcia – que é o Dr. Abílio Garcia de Carvalho – talvez desde 1920. E foi ele com certeza quem lhe receitou a cura marinha.
Para este médico, a Alexandrina devia ser uma doente especial, pois terá visto nela desde o princípio uma heroína, ao modo de Santa Maria Goretti.
O seu consultório ficava na Rua de Santos Minho, perto do actual Quartel dos Bombeiros. A Alexandrina viveria no n.º 33 da Rua da Junqueira, a umas duas centenas de metros.
O Pe. Pinho, um pouco adiante, acrescenta no seu livro:

Andou a pé durante dois anos, sofrendo fisicamente muito. Continuou sempre em tratamento. Sabendo a mãe que não havia esperanças de a curar pelo médico que a tratava (o Dr. Abílio de Carvalho), pediu-lhe que consultasse outro que vivia perto da sua aldeia, para evitar despesas que tinha em a levar à Vila (Póvoa de Varzim). Com isso, a Alexandrina desgostou-se muito, porque estava habituada com ele.

«Desgostou-se muito, porque estava habituada com ele», certamente ao menos porque havia entre os dois larga comunhão de empenhamento religioso; ardia nos dois o mesmo fogo. Não vai o Dr. Abílio de Carvalho dissertar sobre o tema da Eucaristia no Congresso Eucarístico da Póvoa? E um dia há-de inscrevê-la no Apostolado dos Doentes.
Passou depois a ser seu médico assistente o Dr. João Alves Ferreira, de Macieira de Rates.
Quando, muitos anos adiante, ao reviver a Paixão, a Alexandrina readquire a capacidade motora, o Pe. Pinho sentiu necessidade de ouvir a voz dos médicos, como escreve em No Calvário de Balasar, pág. 146:

Convidaram-se, antes de mais ninguém, o médico assistente, Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, da Póvoa de Varzim, a presenciar alguns desses êxtases da Paixão.

Não se esqueça que o Pe. Pinho vivera alguns anos na Póvoa de Varzim (fora aí que criara a revista eucarística Cruzada) e que certamente aí conhecera este dinâmico Dr. Abílio de Carvalho. Havia sido até na Basílica do Sagrado Coração de Jesus (então ainda em construção) que este lera em 1925 a sua intervenção no Congresso Eucarístico. Além disso, anunciava os seus serviços no jornal A Voz do Crente, a que indirectamente o nome do Pe. Pinho estaria ligado.
Mas havia outra razão, mais clínica: era razoável que começasse por ser ouvido o médico que tratara a Alexandrina ao tempo em que ela perdera a capacidade de se movimentar. Além disso, ele fazia radiografias, o que devia ser raro no tempo e foi visto como o meio de diagnóstico mais prometedor.
Num relatório de 24/4/45, o Pe. Pinho refere-se assim à actuação do Dr. Abílio de Carvalho neste período:

Eu mesmo fui o primeiro a ficar perplexo, não sobre os êxtases mas sobre os movimentos (que readquiria no momento da Paixão). Por este motivo interessava-me saber com certeza qual o género da sua paralisia. Falei disso ao Dr. Abílio de Carvalho, que já tinha tratado a doente; interessou-se e levou-a ao Porto, ao Dr. Roberto de Carvalho, em Dezembro de 1938.

O Dr. Roberto de Carvalho era um especialista de radiologia, que fora companheiro das lutas académicas do Dr. Abílio de Carvalho (mas não eram familiares, apesar do apelido comum) ao tempo do CADC (ele e o Dr. Pessegueiro, que também vai reaparecer adiante.)
A confirmar as palavras do Pe. Pinho, na biografia que Gabriele Amorth dedicou à Alexandrina, vem uma fotografia em que o Dr. Abílio de Carvalho está de cócoras ao lado dela, que, em êxtase, revive a Paixão. Diz a legenda que o «Dr. Abílio tenta em vão separar as mãos de Alexandrina, unidas no momento da flagelação».
Na Autobiografia, a Alexandrina, referindo-se a este período, ditou:

Sucederam-se a estes (aos exames dos teólogos) os dos médicos, que foram bem dolorosos, deixando o meu corpo em mísero estado. Parecia-me que andava a ser julgada de tribunal em tribunal, como se tivesse praticado os maiores crimes. Quanto me custava vê-los entrar no meu quarto e, depois de me examinarem e observarem, vê-los reunir-se numa sala para discutirem e minha causa, deixando-me sob o peso da maior humilhação.
Se não me engano, foi na terceira crucifixão que vieram os médicos examinar o meu caso. É difícil e sei que não posso descrever todo o meu sofrimento. Deixavam o meu corpo martirizado, mas outras coisas havia que me custavam muito mais. A vergonha que me faziam passar! Triste cena eu fazia diante deles! Nem a maior criminosa seria julgada num tribunal com mais cuidado! Se pudesse abrir a minha alma e deixar ver o que nela se passa, porque estou a reviver esses dias, fá-lo-ia só com o fim de fazer bem às almas, mostrando quanto sofro por amor de Jesus e das almas. Foi só por isto que me expus a tais sofrimentos.
Quando o meu Director espiritual me falou em ser examinada pelos médicos, foi para mim um grande tormento, uma grande barreira que se levantou em minha alma.

E ainda isto era o princípio. Outras idas ao Porto, principalmente ao Refúgio de Paralisia Infantil, foram muito mais dolorosas.
Na pág. 147 do livro do Pe. Pinho, transcreve-se uma carta do Dr. Roberto de Carvalho dirigida ao Dr. Abílio de Carvalho. Veja-se:

Meu prezado amigo e colega

O estudo analítico da coluna lombar, sacro, articulações sacro-ilíacas e articulações coxo-femurais não mostra a existência de qualquer lesão óssea evidente. Os corpos vertebrais, os espaços intervertebrais, os contornos ilíacos, dum modo geral, toda esta estrutura é regular e normal, como se verá pelo cliché junto, não havendo qualquer sinal que nos leve a pensar em lesões ósseas propriamente ditas, parecendo portanto, que as suas perturbações tróficas devem estar relacionadas com qualquer processo de mielite, lesão medular, que não é fácil de estudar, como é sabido, pelo exame radiológico. É um caso para ser internado e estudado convenientemente, porque com o estádio geral que a doente apresenta e sem um estudo cuidadoso do caso, não é possível formar qualquer hipótese.
Com os cumprimentos do amigo grato,
R.C.

Em Balasar há duas cartas deste Dr. Abílio. Uma dirigida ao Pe. Pinho e outra talvez ao Prof. Roberto de Carvalho, trazendo o papel nas duas o timbre da presidência da Câmara. Nelas se mostra deveras interessado em concorrer para o esclarecimento das dúvidas sobre a doença da Alexandrina.
Exprime-se assim na que julgo dirigida ao Dr. Roberto de Carvalho:

Meu caro colega
Agradeço as suas notícias.
Entendo que terá a doente de ir ao Porto e lá permanecer dois ou três dias para ser observada. Espero a fineza de me dizer o dia em que ela vai, para eu lá ir com o meu colega num dos dias, a fim de que o Dr. Pessegueiro a veja, se o colega concordar.
Seu amigo e colega,
Abílio de Carvalho.

Veja-se agora a que é dirigida ao Pe. Pinho:

Ex.mo Senhor Pe. Pinho e meu muito prezado amigo

A minha vida muito trabalhosa e o meu estado de saúde muito precário durante alguns dias, entre os quais os últimos da semana finda, obstaram a que eu pudesse ir na sexta-feira à rua de Santa Catarina, como desejava.
O Dr. Pessegueiro (companheiro de juventude do Dr. Abílio, como já se disse) fez-me a vontade indo ver a doente; acredito porém que a sua observação fosse superficial, porque se não tratava de assunto da sua especialidade; porém, o que eu desejava não era uma opinião sobre os factos, e antes um exame físico tanto quanto possível completo; não interpretou assim, o que foi pena.
Ao falar anteontem com ele, disse-me que na verdade se inclinava para a hipótese de alta histeria; porém, que a doente deveria ser observada com cuidado por especialista no assunto. Também assim o julgo; e por isso acho óptima a ideia de que seja vista pelo prof. Elísio de Moura, incontestavelmente uma das mais altas competências e sumidades no assunto; estou certo que a sua opinião dissipará nossas dúvidas.
Eu não tenho senão relações de cumprimento com S. Ex.a; não deseja V. Rev.a trazê-lo na sexta-feira, 30 do corrente? Eu conto cá estar e, caso V. Ex.a me previna de que vem, eu procuraria também assistir, para trocar impressões.
A radiografia que tenho e da qual envio o relatório (é o único) nada revela, não confirmando as minhas suspeitas de lesão vertebral.
Precisamos caminhar com toda a prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof. Elísio de Moura. Ainda bem que ele vem a Braga nas férias. V. Ex.a, se assim o entender, poderá mostrar-lhe esta carta, a fim de que ele faça a caridade de vir dissipar as dúvidas.
Agradecendo a acarta de V. Ex.a, tenho a honra de me subscrever amigo ...
14/12/938
Abílio de Carvalho

«Precisamos caminhar com toda a prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof. Elísio de Moura», afirma. Com prudência e insistência até ao esclarecimento completo, recorrendo às pessoas mais credenciadas. Mas esse esclarecimento só vai ser adquirido mais tarde.
O Dr. Abílio de Carvalho morreu em 26 de Janeiro de 1941, com um cancro no estômago. Ora fora nesse mesmo Janeiro que o Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo se apresentara ao Pe. Pinho a pedir autorização para visitar a Alexandrina. Mas o Dr. Abílio de Carvalho já se teria retirado de Balasar desde há algum tempo, não só pela doença que o acometera, mas também porque fora nomeado governador civil de Angra do Heroísmo. Como quer que fosse, a Alexandrina passou das mãos dum médico sábio e piedoso para as de outro com estas mesmas qualidades e com determinação, com aquela força de vontade que vence as barreiras.

Se entendermos a afluência ao funeral do Dr. Abílio de Carvalho como uma avaliação da obra que deixou, então esse testemunho é tanto ou mais eloquente do que os elogios que sobre ele se escreveram. Um jornal poveiro referiu-a nestes termos:

Um enorme formigueiro humano, de pessoas de todas as categorias, desde as mais humildes (funcionários e trabalhadores), até às classes mais categorizadas em representação e posição social, tudo, tudo ali compareceu.
Magistrados, advogados, doutores, membros do Governo, oficiais de todas as patentes, as mais altas individualidades do Clero, todos, todos sem qualquer excepção, comungando apenas num ideal supremo, dor, respeito e saudade, ali estavam reunidos.
3