segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Médico da Beata Alexandrina


São vários os médicos que se nos deparam na biografia da Beata Alexandrina. Uns com nomes sonantes, outros mais humildes; uns acompanharam-na por longos períodos, outros abeiraram-se dela mais pontualmente.
Entre os nomes sonantes, contam-se o Dr. Elísio de Moura, o Dr. Henrique Gomes de Araújo e o Dr. Roberto de Carvalho. Entre os que a acompanharam por mais longos períodos, destacam-se o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, o Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Dias de Azevedo. Médicos como o Dr. Pessegueiro e o Dr. Carlos Lima e outros tiveram uma intervenção ocasional.
O Dr. Abílio de Carvalho, encontramo-lo em dois mementos diferentes, mas relacionados: quando ela tem dezasseis a dezoito anos, ainda no contexto das sequelas do Salto, e em 1938, quando, ao reviver a Paixão, readquiria a capacidade motora perdida 12 anos antes.
Veja-se, para começar, esta citação do livro do Pe. Pinho No Calvário de Balasar, pág. 23:

Depois (a Alexandrina) sempre melhorou um pouquinho e foi para a Póvoa a fim de continuar o tratamento. Mas vendo que pouco adiantava, foi ouvir a opinião de outros médicos, entre eles o especialista do Porto Dr. Abel Pacheco, que a submeteu a uma exame rigorosíssimo. Nesta ocasião a Alexandrina chorava muito com dores e com vergonha. O Sr. Dr. Abel Pacheco informou o médico assistente, que nessa ocasião era o Dr. Garcia, de que a doente não tinha cura. É claro que ela não sofreu este desgosto, porque e a família soube encobri-lo.

A ida da Alexandrina ao Porto ao especialista Dr. Abel Pacheco aconteceu em 1922. O mais provável é que ela já frequentasse o Dr. Garcia – que é o Dr. Abílio Garcia de Carvalho – talvez desde 1920. E foi ele com certeza quem lhe receitou a cura marinha.
Para este médico, a Alexandrina devia ser uma doente especial, pois terá visto nela desde o princípio uma heroína, ao modo de Santa Maria Goretti.
O seu consultório ficava na Rua de Santos Minho, perto do actual Quartel dos Bombeiros. A Alexandrina viveria no n.º 33 da Rua da Junqueira, a umas duas centenas de metros.
O Pe. Pinho, um pouco adiante, acrescenta no seu livro:

Andou a pé durante dois anos, sofrendo fisicamente muito. Continuou sempre em tratamento. Sabendo a mãe que não havia esperanças de a curar pelo médico que a tratava (o Dr. Abílio de Carvalho), pediu-lhe que consultasse outro que vivia perto da sua aldeia, para evitar despesas que tinha em a levar à Vila (Póvoa de Varzim). Com isso, a Alexandrina desgostou-se muito, porque estava habituada com ele.

«Desgostou-se muito, porque estava habituada com ele», certamente ao menos porque havia entre os dois larga comunhão de empenhamento religioso; ardia nos dois o mesmo fogo. Não vai o Dr. Abílio de Carvalho dissertar sobre o tema da Eucaristia no Congresso Eucarístico da Póvoa? E um dia há-de inscrevê-la no Apostolado dos Doentes.
Passou depois a ser seu médico assistente o Dr. João Alves Ferreira, de Macieira de Rates.
Quando, muitos anos adiante, ao reviver a Paixão, a Alexandrina readquire a capacidade motora, o Pe. Pinho sentiu necessidade de ouvir a voz dos médicos, como escreve em No Calvário de Balasar, pág. 146:

Convidaram-se, antes de mais ninguém, o médico assistente, Dr. João Alves Ferreira e o Dr. Abílio Garcia de Carvalho, da Póvoa de Varzim, a presenciar alguns desses êxtases da Paixão.

Não se esqueça que o Pe. Pinho vivera alguns anos na Póvoa de Varzim (fora aí que criara a revista eucarística Cruzada) e que certamente aí conhecera este dinâmico Dr. Abílio de Carvalho. Havia sido até na Basílica do Sagrado Coração de Jesus (então ainda em construção) que este lera em 1925 a sua intervenção no Congresso Eucarístico. Além disso, anunciava os seus serviços no jornal A Voz do Crente, a que indirectamente o nome do Pe. Pinho estaria ligado.
Mas havia outra razão, mais clínica: era razoável que começasse por ser ouvido o médico que tratara a Alexandrina ao tempo em que ela perdera a capacidade de se movimentar. Além disso, ele fazia radiografias, o que devia ser raro no tempo e foi visto como o meio de diagnóstico mais prometedor.
Num relatório de 24/4/45, o Pe. Pinho refere-se assim à actuação do Dr. Abílio de Carvalho neste período:

Eu mesmo fui o primeiro a ficar perplexo, não sobre os êxtases mas sobre os movimentos (que readquiria no momento da Paixão). Por este motivo interessava-me saber com certeza qual o género da sua paralisia. Falei disso ao Dr. Abílio de Carvalho, que já tinha tratado a doente; interessou-se e levou-a ao Porto, ao Dr. Roberto de Carvalho, em Dezembro de 1938.

O Dr. Roberto de Carvalho era um especialista de radiologia, que fora companheiro das lutas académicas do Dr. Abílio de Carvalho (mas não eram familiares, apesar do apelido comum) ao tempo do CADC (ele e o Dr. Pessegueiro, que também vai reaparecer adiante.)
A confirmar as palavras do Pe. Pinho, na biografia que Gabriele Amorth dedicou à Alexandrina, vem uma fotografia em que o Dr. Abílio de Carvalho está de cócoras ao lado dela, que, em êxtase, revive a Paixão. Diz a legenda que o «Dr. Abílio tenta em vão separar as mãos de Alexandrina, unidas no momento da flagelação».
Na Autobiografia, a Alexandrina, referindo-se a este período, ditou:

Sucederam-se a estes (aos exames dos teólogos) os dos médicos, que foram bem dolorosos, deixando o meu corpo em mísero estado. Parecia-me que andava a ser julgada de tribunal em tribunal, como se tivesse praticado os maiores crimes. Quanto me custava vê-los entrar no meu quarto e, depois de me examinarem e observarem, vê-los reunir-se numa sala para discutirem e minha causa, deixando-me sob o peso da maior humilhação.
Se não me engano, foi na terceira crucifixão que vieram os médicos examinar o meu caso. É difícil e sei que não posso descrever todo o meu sofrimento. Deixavam o meu corpo martirizado, mas outras coisas havia que me custavam muito mais. A vergonha que me faziam passar! Triste cena eu fazia diante deles! Nem a maior criminosa seria julgada num tribunal com mais cuidado! Se pudesse abrir a minha alma e deixar ver o que nela se passa, porque estou a reviver esses dias, fá-lo-ia só com o fim de fazer bem às almas, mostrando quanto sofro por amor de Jesus e das almas. Foi só por isto que me expus a tais sofrimentos.
Quando o meu Director espiritual me falou em ser examinada pelos médicos, foi para mim um grande tormento, uma grande barreira que se levantou em minha alma.

E ainda isto era o princípio. Outras idas ao Porto, principalmente ao Refúgio de Paralisia Infantil, foram muito mais dolorosas.
Na pág. 147 do livro do Pe. Pinho, transcreve-se uma carta do Dr. Roberto de Carvalho dirigida ao Dr. Abílio de Carvalho. Veja-se:

Meu prezado amigo e colega

O estudo analítico da coluna lombar, sacro, articulações sacro-ilíacas e articulações coxo-femurais não mostra a existência de qualquer lesão óssea evidente. Os corpos vertebrais, os espaços intervertebrais, os contornos ilíacos, dum modo geral, toda esta estrutura é regular e normal, como se verá pelo cliché junto, não havendo qualquer sinal que nos leve a pensar em lesões ósseas propriamente ditas, parecendo portanto, que as suas perturbações tróficas devem estar relacionadas com qualquer processo de mielite, lesão medular, que não é fácil de estudar, como é sabido, pelo exame radiológico. É um caso para ser internado e estudado convenientemente, porque com o estádio geral que a doente apresenta e sem um estudo cuidadoso do caso, não é possível formar qualquer hipótese.
Com os cumprimentos do amigo grato,
R.C.

Em Balasar há duas cartas deste Dr. Abílio. Uma dirigida ao Pe. Pinho e outra talvez ao Prof. Roberto de Carvalho, trazendo o papel nas duas o timbre da presidência da Câmara. Nelas se mostra deveras interessado em concorrer para o esclarecimento das dúvidas sobre a doença da Alexandrina.
Exprime-se assim na que julgo dirigida ao Dr. Roberto de Carvalho:

Meu caro colega
Agradeço as suas notícias.
Entendo que terá a doente de ir ao Porto e lá permanecer dois ou três dias para ser observada. Espero a fineza de me dizer o dia em que ela vai, para eu lá ir com o meu colega num dos dias, a fim de que o Dr. Pessegueiro a veja, se o colega concordar.
Seu amigo e colega,
Abílio de Carvalho.

Veja-se agora a que é dirigida ao Pe. Pinho:

Ex.mo Senhor Pe. Pinho e meu muito prezado amigo

A minha vida muito trabalhosa e o meu estado de saúde muito precário durante alguns dias, entre os quais os últimos da semana finda, obstaram a que eu pudesse ir na sexta-feira à rua de Santa Catarina, como desejava.
O Dr. Pessegueiro (companheiro de juventude do Dr. Abílio, como já se disse) fez-me a vontade indo ver a doente; acredito porém que a sua observação fosse superficial, porque se não tratava de assunto da sua especialidade; porém, o que eu desejava não era uma opinião sobre os factos, e antes um exame físico tanto quanto possível completo; não interpretou assim, o que foi pena.
Ao falar anteontem com ele, disse-me que na verdade se inclinava para a hipótese de alta histeria; porém, que a doente deveria ser observada com cuidado por especialista no assunto. Também assim o julgo; e por isso acho óptima a ideia de que seja vista pelo prof. Elísio de Moura, incontestavelmente uma das mais altas competências e sumidades no assunto; estou certo que a sua opinião dissipará nossas dúvidas.
Eu não tenho senão relações de cumprimento com S. Ex.a; não deseja V. Rev.a trazê-lo na sexta-feira, 30 do corrente? Eu conto cá estar e, caso V. Ex.a me previna de que vem, eu procuraria também assistir, para trocar impressões.
A radiografia que tenho e da qual envio o relatório (é o único) nada revela, não confirmando as minhas suspeitas de lesão vertebral.
Precisamos caminhar com toda a prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof. Elísio de Moura. Ainda bem que ele vem a Braga nas férias. V. Ex.a, se assim o entender, poderá mostrar-lhe esta carta, a fim de que ele faça a caridade de vir dissipar as dúvidas.
Agradecendo a acarta de V. Ex.a, tenho a honra de me subscrever amigo ...
14/12/938
Abílio de Carvalho

«Precisamos caminhar com toda a prudência, e para tal convém sobretudo a opinião do Prof. Elísio de Moura», afirma. Com prudência e insistência até ao esclarecimento completo, recorrendo às pessoas mais credenciadas. Mas esse esclarecimento só vai ser adquirido mais tarde.
O Dr. Abílio de Carvalho morreu em 26 de Janeiro de 1941, com um cancro no estômago. Ora fora nesse mesmo Janeiro que o Dr. Manuel Augusto Dias de Azevedo se apresentara ao Pe. Pinho a pedir autorização para visitar a Alexandrina. Mas o Dr. Abílio de Carvalho já se teria retirado de Balasar desde há algum tempo, não só pela doença que o acometera, mas também porque fora nomeado governador civil de Angra do Heroísmo. Como quer que fosse, a Alexandrina passou das mãos dum médico sábio e piedoso para as de outro com estas mesmas qualidades e com determinação, com aquela força de vontade que vence as barreiras.

Se entendermos a afluência ao funeral do Dr. Abílio de Carvalho como uma avaliação da obra que deixou, então esse testemunho é tanto ou mais eloquente do que os elogios que sobre ele se escreveram. Um jornal poveiro referiu-a nestes termos:

Um enorme formigueiro humano, de pessoas de todas as categorias, desde as mais humildes (funcionários e trabalhadores), até às classes mais categorizadas em representação e posição social, tudo, tudo ali compareceu.
Magistrados, advogados, doutores, membros do Governo, oficiais de todas as patentes, as mais altas individualidades do Clero, todos, todos sem qualquer excepção, comungando apenas num ideal supremo, dor, respeito e saudade, ali estavam reunidos.

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